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ORIGINAL ARTICLE

Mitral homografts: a reality

Francisco Diniz Affonso da Costa0; Décio Cavalet Soarer Abuchaim0; Hermínio HAGGI FILHO0; Robinson Poffo0; Rogério Gaspar0; George Soncini da ROSA0; Rodrigo MILANI0; Martim BURGER0; Eduardo ADAM0; Vladimir QUINTANEIRO0; Djalma Luis Faraco0; Fábio Sallum0; Iseu Affonso da Costa0

DOI: 10.1590/S0102-76381998000300004

ABSTRACT

Background: the use of cryopreserved aortic valve homografts is associated with excellent quality of life, low morbidity and satisfactory durability. We expect to achieve similar results in the mitral position with the use of cryopreserved mitral homografts. Objectives: Evaluate the immediate and short-term results of mitral valve replacement with cryopreserved mitral homografts. Material and Methods: Between July/97 and February/98, 8 patients with a mean age of 40.3 ± 6.2 years were submitted to mitral valve replacement with cryopreserved mitral homografts. Operative technique consisted of latero-lateral papillary muscle fixation, a running continuous suture at annulus level and annuloplasty with a Carpentier ring. Before hospital discharge, all patients were submitted to Doppler echocardiographic control for assessment of valvar and ventricular function. Patients were requested to return at the first and subsequently every 3 months postoperatively for further clinical and echocardiographic control. Results: There was one early non valve-related death. Echocardiographic evaluation before hospital discharge revealed a mean mitral valve area of 3.1 ± 0.6 cm2 and a mean gradient of 3.5 ± 1.6 mmHg. Valvar insufficiency was graded as non-existent or trivial in four cases and mild in the remaining three patients. Ejection fraction which was 57 ± 7% pre-operatively was well preserved in the postoperative period (62 ± 6%). Pulmonary hipertension reduced significantly from 87 ± 15 mmHg pre-operatively to 48 ± 12 mmHg post-operatively. There was also a reduction in the left atrial cavity from 61 ± 10 mm to 53 ± 7 mm. No patient was lost to follow-up. After a mean follow-up time 4.1 ± 2.5 months, all patients are functionally well without postoperative events. Late echocardiographic control showed persistence of the good immediate results. Conclusions: The immediate and short-term results of mitral valve replacement with mitral homografts are satisfactory, demonstrating the feasibility of the technique. Longer follow-up periods are necessary to determine durability of this graft and to eventually expand its indications.

RESUMO

Fundamentos: A utilização de homoenxertos valvares aórticos criopreservados está associada a excelente qualidade de vida, com baixa morbidade e durabilidade satisfatória. Espera-se obter resultados semelhantes em posição mitral com o emprego de homoenxertos mitrais criopreservados. Objetivo: Avaliar os resultados imediatos e a curto prazo da substituição da valva mitral por homoenxerto mitral criopreservado. Casuística e Métodos: De julho/97 a fevereiro/98, 8 pacientes com média de idades de 40,3 ± 6,2 anos foram submetidos a substituição da valva mitral por homoenxerto mitral criopreservado. A técnica de implante consistiu de fixação látero-lateral dos músculos papilares, sutura anular contínua e anuloplastia com anel de Carpentier. Antes da alta, todos os pacientes realizaram ecocardiografia bidimensional com Doppler para análise da função valvar e ventricular. Os pacientes foram solicitados a retornar no primeiro mês e, subseqüentemente, a cada três meses de pós-operatório, para controles clínico e ecocardiográfico tardio. Resultados: Houve um óbito hospitalar de causa não relacionada ao enxerto. A avaliação ecocardiográfica antes da alta hospitalar demonstrou média das áreas valvares de 3,1 ± 0,6 cm2 e média dos gradientes médios de 3,5 ± 1,6 mmHg. A insuficiência valvar foi quantificada como inexistente ou trivial em 4 casos e leve em 3. A fração de ejeção de 57 ± 7% no pré-operatório foi adequadamente preservada no pós-operatório (62 ± 6%). Os níveis de hipertensão pulmonar regrediram significativamente de 87 ± 15 mmHg no pré-operatório para 48 ± 12 mmHg no pós-operatório. Houve também redução do tamanho da cavidade atrial esquerda de 61 ± 10 mm para 53 ± 7 mm. Nenhum paciente foi perdido do acompanhamento tardio. Após um tempo médio de seguimento de 4,1 ± 2,5 meses, os pacientes encontram-se funcionalmente bem e sem complicações pós-operatórias. O estudo ecocardiográfico tardio demonstra a persistência dos bons resultados imediatos. Conclusões: Os resultados imediatos e a curto prazo da substituição da valva mitral por homoenxerto mitral criopreservado foram bastante satisfatórios. Somente com tempos mais prolongados de observação poderemos determinar a durabilidade desse enxerto e, eventualmente, expandir as suas indicações.
INTRODUÇÃO

Homoenxertos valvares aórticos são utilizados clinicamente, com sucesso, há mais de 30 anos (1). Por terem desempenho hemodinâmico próximo ao fisiológico, permitem maior regressão da hipertrofia muscular e normalização da função ventricular, quando comparados às próteses valvares biológicas ou mecânicas convencionais (2). Estão associados a índices quase nulos de tromboembolismo, apresentam maior resistência à infecção e sua durabilidade, apesar de limitada, pode ser considerada satisfatória (1).

A possibilidade de se substituir a valva mitral por um homoenxerto mitral foi demonstrada experimentalmente já no início da década de 60 (3-5). A análise macroscópica e histológica de enxertos implantados por períodos de até um ano demonstraram que as cúspides e as cordas tendíneas estavam bem preservadas, os músculos papilares do doador se apresentavam fibrosados e firmemente aderidos aos do receptor e não havia sinais de rejeição. Os resultados clínicos, entretanto, foram marcados por alto índice de disfunção precoce secundário a problemas técnicos, especialmente com a fixação dos músculos papilares (6-8).

Estudos mais recentes têm demonstrado que as próteses aórticas sem suporte, por serem mais fisiológicas, estão associadas a melhores resultados clínicos (9). Em posição mitral, onde os resultados com as próteses valvares convencionais ainda são menos favoráveis, a utilização de próteses mais fisiológicas seria desejável (6, 8).

Em decorrência de melhores conhecimentos sobre a anatomia e fisiopatologia da valva mitral, da experiência adquirida com as operações reconstrutivas e do aperfeiçoamento nas técnicas de preservação dos enxertos, o renovado interesse na aplicação de homoenxertos mitrais foi conseqüência lógica. Assim, ACAR et al. (10) reportaram, recentemente, excelentes resultados clínicos com o uso de homoenxertos mitrais com períodos de observação de até 34 meses.

Na literatura nacional, o único caso de substituição da valva mitral por homoenxerto mitral foi publicado por NESRALLA et al. (11). Seguindo a mesma filosofia, entretanto com o emprego de heteroenxertos porcinos, temos o trabalho de VRANDECIC et al. (12).

O objetivo deste trabalho é mostrar os resultados imediatos e de curto prazo com o emprego de homoenxertos mitrais criopreservados e discutir detalhes de técnica operatória.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

De julho/97 a fevereiro/98, 8 pacientes foram submetidos a substituição da valva mitral por homoenxerto mitral criopreservado. Sete eram mulheres e a média de idades foi de 40,3 ± 6,2 anos (mínima = 26, máxima = 48 anos). Sete pacientes eram brancas e o paciente masculino era da raça negra. Alguns dados clínicos e de exames complementares encontram-se na Tabela 1.



Todos os pacientes foram consultados com relação ao emprego do homoenxerto mitral e consentiram com a realização da técnica.

Todos os pacientes foram submetidos a ecocardiografia bidimensional com Doppler (Eco) no pré-operatório e foram anotados, sempre que disponíveis, a dimensão do átrio esquerdo (AE), dimensões diastólica (VEd) e sistólica do ventrículo esquerdo (VEs), encurtamento porcentual (%DD) e fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FE) e estimativa da pressão sistólica e artéria pulmonar (PAP). Além da avaliação habitual da lesão da valva mitral, foi medida a altura da cúspide anterior no corte de eixo longitudinal.

Durante a operação, foi feita a análise visual do enxerto após o implante e testada a suficiência valvar com injeção de solução salina na cavidade ventricular esquerda. Em duas ocasiões, foi feito o registro da medida intra-operatória simultânea das pressões atrial esquerda e ventricular esquerda.

Antes da alta hospitalar, todos foram avaliados semiologicamente, pelo eletrocardiograma e submetidos a outro Eco de controle, no qual, além das medidas já realizadas anteriormente, foram anotadas as velocidades de fluxo transvalvar, calculadas as áreas valvares e estimado o grau de refluxo valvar.

Solicitou-se aos pacientes retornar no primeiro mês e, subseqüentemente, a cada três meses de pós-operatório, para avaliação clínica e controle ecocardiográfico.

Homoenxerto mitral

Os homoenxertos são obtidos de doadores de múltiplos órgãos e "esterilizados" em solução nutriente (RPMI) contendo antibióticos (cefoxitina 240 µg/ml, lincomicina 120 µg/ml, polimixina B100 µg/ml e vancomicina 50 µg/ml) por 12-24 horas. Em seguida, são congelados de maneira controlada a -1°C/min em nova solução nutriente (RPMI + soro fetal bovino 10%) contendo um crioprotetor (DMSO) e criopreservados a -196°C em nitrogênio líqüido, até o momento do implante. Na hora da operação, o homoenxerto selecionado é descongelado de forma rápida em soluções salinas aquecidas e com concentrações decrescentes de DMSO.

Antes do implante, a região anular do homoenxerto mitral é completamente dissecada de suas inserções musculares atriais e ventriculares, assim como do tecido gorduroso da junção atrioventricular. Durante o processo de dissecção, deve-se tomar extremo cuidado para não lesar as cúspides, especialmente na região comissural e nos trígonos fibrosos. Os músculos papilares são liberados de sua inserção parietal no ventrículo esquerdo e seccionados a 1-1,5 cm abaixo da origem das cordas tendíneas (Figura 1).


Fig. 1 - Homoenxerto mitral logo após o descongelamento. Antes do implante, os músculos papilares serão seccionados a 1-1,5 cm abaixo da inserção das cordas tendíneas. Os remanescentes de musculatura atrial e gordura do sulco atrioventricular também serão eliminados.

Técnica Operatória

As operações são realizadas por esternotomia mediana e com auxílio de circulação extracorpórea (CEC), com canulação da aorta e das veias cavas. É empregada hipotermia sistêmica moderada de 32°C e proteção miocárdica com solução cardioplégica sangüínea gelada (4°C) administrada de forma anterógrada na porção inicial da aorta a cada 20-30 minutos.

O átrio esquerdo é aberto longitudinalmente logo abaixo do sulco interatrial, estendendo-se a incisão inferiormente, por debaixo da veia cava inferior até próximo do sulco atrioventricular e, superiormente, por debaixo da veia cava superior em direção ao teto do átrio esquerdo. A valva mitral é exposta com auxílio de afastadores auto-estáticos especiais.

A valva mitral é, então, cuidadosamente examinada e, uma vez afastada a possibilidade de correção por procedimentos conservadores, é feita a opção de sua substituição por homoenxerto mitral criopreservado (Figura 2-A).


Fig. 2 - Implante de homoenxerto mitral. 2A - Homoenxerto mitral já dissecado. 2B - A valva nativa é ressecada, mantendo-se intactos os músculos papilares. 2C - Fixação látero-lateral dos músculos papilares. 2D - Sutura anular com chuleio contínuo. Os trígonos fibrosos devem estar precisamente alinhados. 2E - Aspecto final após o implante de anel do anel de Carpentier.

Antes da ressecção da valva, é medida a altura da cúspide anterior e selecionado um homoenxerto de tamanho igual ou 1-2 mm maior. Uma vez determinado o tamanho do enxerto a ser empregado, inicia-se, imediatamente, o seu descongelamento.

A valva mitral é desinserida circularmente de seu anel, deixando-se apenas 1-2 mm de tecido residual. As cordas tendíneas são seccionadas logo acima de sua inserção nos músculos papilares, deixando-os totalmente intactos (Figura 2-B).

Na ponta fibrosa de cada músculo papilar, é passado um ponto de tração de fio multifilamentado 2-0 com a finalidade de melhorar a sua exposição. Em seguida, cada músculo papilar é dissecado em sua base, liberando-os parcialmente das bandas musculares que os fixam na parede ventricular.

A fixação dos músculos papilares é feita de maneira látero-lateral, conforme preconizada por ACAR et al. (10). Inicialmente, são passados dois pontos em forma de U de fio multifilamentado 4-0 ancorados em pequenos retalhos de Teflon no corpo do músculo papilar póstero-medial do enxerto. Esses pontos são passados em região correspondente no músculo papilar do receptor, entretanto, em nível um pouco inferior, de forma que a origem das cordas tendíneas do enxerto fique em um plano discretamente abaixo da ponta do músculo papilar do receptor. Uma vez confirmado o adequado posicionamento do músculo papilar do doador, esses dois pontos são amarrados.

Para completar a fixação do músculo papilar do doador, são passados 6-8 pontos adicionais de fio multifilamentado 4-0 nas bordas anterior, posterior e apical dos músculos papilares, consolidando de forma adequada a fixação dos mesmos (Figura 2-C).

Procedimento similar é repetido para a fixação do músculo papilar ântero-lateral.

Antes de realizar a sutura no nível anular, são passados pontos em forma de U de fio multifilamentado 2-0 no anel mitral do receptor. Esses pontos serão utilizados, ao final do procedimento, para a fixação de anel rígido de Carpentier.

Em seguida, o anel mitral do enxerto é suturado com chuleio contínuo de fio de polipropileno 4-0 no anel do receptor, tomando o cuidado de posicionar adequadamente as comissuras. Isso é obtido fazendo com que os trígonos fibrosos do enxerto coincidam com os do receptor (Figura 2-D).

Nessa fase, faz-se o teste de suficiência valvar pela injeção de solução salina na cavidade ventricular esquerda, para certificar-se da ausência de prolapso das cúspides.

Para completar o procedimento, um anel rígido de Carpentier de tamanho correspondente à cúspide anterior do homoenxerto é implantado utilizando os pontos de fio multifilamentado 2-0 previamente colocados (Figura 2-E).

O restante da operação é feito como na substituição valvar mitral convencional.

RESULTADOS

O tempo de pinçamento aórtico foi de 140 ± 19 min (mínimo = 109, máximo = 160) e o de CEC 168 ± 20 min (mínimo = 123, máximo = 185), refletindo a complexidade da operação.

Houve um óbito hospitalar não relacionado ao enxerto. A paciente apresentava boa evolução hemodinâmica, mas apresentou quadro de pneumonia, que evoluiu para sepse e falência de múltiplos órgãos.

A morbidade pós-operatória incluiu 1 caso de reoperação por sangramento e 1 de bloqueio atrioventricular total transitório, que reverteu espontaneamente a sinusal no 4º dia.

Todos os pacientes tiveram evolução satisfatória do ponto de vista cardiovascular. A ausculta pós-operatória foi normal em 4 pacientes e revelou discreto sopro sistólico em 3. O ritmo no pós-operatório foi sinusal em 4 pacientes, juncional em 1 e 2 permaneceram em fibrilação atrial.

O aspecto visual intra-operatório ao término do implante do homoenxerto, bastante favorável, demonstrou amplo orifício valvar e cúspides delgadas. O teste com injeção de solução salina na cavidade ventricular esquerda demonstrou ausência de prolapso e suficiência valvar adequada, mesmo antes da anuloplastia (Figura 3). Vazamentos muito discretos na região da comissura póstero-medial foram ocasionalmente observados.




Fig. 3 - 3A - Caso de nº 6. Aspecto operatório do homoenxerto antes da anuloplastia. 3B - Após o implante do anel de Carpentier.

Nas duas oportunidades em que foi feito o registro intra-operatório simultâneo das pressões atrial e ventricular esquerda, os gradientes foram desprezíveis e sem sinais de insuficiência valvar (Figura 4).


Fig. 4 - Curvas pressóricas simultâneas do átrio e ventrículo esquerdo. Notar que o gradiente de pressão é desprezível.

Os dados ecocardiográficos pós-operatórios imediatos encontram-se na Tabela 2. A média das áreas valvares foi de 3,1 ± 0,6 cm2 e a média dos gradientes médios foi de 3,5 ± 1,6 mmHg, com velocidades de fluxo próximas às fisiológicas. O refluxo valvar foi ausente ou trivial em 4 pacientes e leve em 3.



Na ecocardiografia mono e bidimensional pôde-se observar livre movimentação das cúspides do homoenxerto, o que resultou em amplo orifício circular mitral na diástole. Não foi detectado prolapso das cúspides durante a sístole ventricular. As curvas de fluxo ao Doppler foram muito semelhantes às fisiológicas (Figura 5).










Fig. 5 - Ecocardiografia pós-operatória. 5A - Eco modo-M demonstrando ampla movimentação da valva mitral. 5B - Corte no eixo longo demonstrando as duas cúspides do homoenxerto mitral amplamente abertas. A cúspide anterior se encontra próximo ao septo interventricular. 5C - A análise de fluxo pelo Doppler demonstra curva de aspecto fisiológico com mínimo gradiente. 5D - Ausência de refluxo transvalvar. 5E - No corte de eixo curto, notamos o amplo orifício circular mitral.

Mesmo no pós-operatório imediato, constatou-se a adequada preservação das dimensões do ventrículo esquerdo e da função ventricular. Houve, também, acentuada diminuição nos níveis de hipertensão pulmonar.

Nenhum paciente foi perdido do seguimento clínico. Após um tempo médio de 4,1 ± 2,5 meses (mínimo = 0,5 meses, máximo = 8 meses), 6 pacientes encontram-se em classe funcional I e 1 paciente em classe II. Não se observou complicação relacionada ao enxerto. Os ecocardiogramas realizados na fase tardia demonstraram manutenção dos resultados iniciais.

COMENTÁRIOS

Os resultados clínicos da substituição valvar mitral com prótese biológica ou mecânica convencional ainda não são adequados (13, 14). Em decorrência do alto estresse fisiológico, é em posição mitral que as biopróteses apresentam a menor durabilidade. É também em posição mitral que as características do fluxo sangüíneo propiciam maior incidência de tromboembolismo periférico e trombose valvar, especialmente com a utilização de próteses mecânicas.

Todas as próteses valvares mitrais convencionais atualmente disponíveis apresentam orifício efetivo de fluxo menor que a valva mitral e podem ser consideradas de leve a moderadamente estenóticas, especialmente em condições de exercício (15). Por serem montadas em anel rígido, a contratilidade fisiológica do anel mitral é praticamente abolida no pós-operatório, o que influencia negativamente a função ventricular (16, 17).

Diversos estudos demonstraram que a preservação do aparelho subvalvar é importante para adequada manutenção da função ventricular no pós-operatório da cirurgia da valva mitral (18, 19). Embora isso possa ser facilmente obtido em pacientes com insuficiência valvar e ventrículos dilatados, os pacientes normalmente podem ser tratados com procedimentos plásticos conservadores. Nos pacientes com estenose valvar predominante, a cavidade ventricular geralmente é pequena e o espessamento, fusão e calcificação do aparelho subvalvar freqüentemente inviabilizam a sua preservação. Além do mais, a obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo pode ser uma complicação, quando se preserva todo o aparelho subvalvar.

Esses motivos podem, pelo menos parcialmente, explicar, porque muitos pacientes persistem funcionalmente limitados, mesmo após a substituição valvar bem sucedida (20). A utilização de uma prótese com desempenho hemodinâmico superior e que pudesse manter a interação fisiológica ânulo-ventricular poderia, pelo menos teoricamente, melhorar de forma significativa esses resultados (8, 10, 21-23).

A possibilidade de se substituir a valva mitral por um homoenxerto mitral já foi demonstrada experimentalmente desde o início da década de 60 (3-5). Clinicamente, entretanto, os relatos desse tipo de operação eram escassos, com casuísticas pequenas e com resultados demonstrando alto índice de disfunção precoce (8, 10, 23-26).

Em 1995, ACAR et al. (10, 21) demonstraram que a valva mitral poderia ser substituída parcial ou totalmente por um homoenxerto mitral com resultados satisfatórios a médio prazo. Mais recentemente, ACAR et al.** confirmaram a manutenção desses bons resultados, não tendo havido necessidade de reoperação por disfunção tecidual primária em mais de 70 implantes, com até 6 anos de evolução. Esses dados têm encorajado outros autores a realizar esse tipo de procedimento.

Nossa experiência, apesar do pequeno número de casos e curto tempo de seguimento, tem sido similar à de ACAR et al. (10). Após um seguimento médio de 4,1 ± 2,5 meses (1-8 meses), todos os pacientes encontram-se funcionalmente bem, não tendo sido observada complicação relacionada à prótese. Apesar de ser um grupo de pacientes graves (reoperações, hipertensão pulmonar sistêmica, FA crônica etc), não ocorreram episódios de tromboembolismo periférico, mesmo na ausência de anticoagulação. Nossa expectativa é de que a morbidade pós-operatória com os homoenxertos mitrais seja baixa, a exemplo do que se verifica com os homoenxertos aórticos.

O implante de um homoenxerto mitral é tecnicamente complexo, envolvendo avaliações um tanto subjetivas de medição e posicionamento geométrico do enxerto (8, 10). Várias medidas têm sido propostas para a adequada seleção do tamanho do enxerto a ser empregado, dentre elas, a altura da cúspide anterior, distância intertrigonal, diâmetro ântero-posterior do anel mitral e/ou distância entre o ápice do músculo papilar e o anel valvar. Apesar de haver uma relação proporcional dessas medidas em valvas normais, elas freqüentemente se encontram muito alteradas em decorrência da lesão valvar, tornando a avaliação bastante imprecisa (6-8, 10, 12, 23).

Nossa casuística é constituída basicamente de pacientes com estenose ou dupla lesão mitral calcificada de origem reumática, com a cavidade ventricular esquerda normal ou apenas discretamente aumentada e o aparelho subvalvar retraído e com fusão. Por esse motivo, a escolha do enxerto foi determinada pela medida da altura da cúspide anterior, conforme preconizado por ACAR et al. (10). A observação visual intra-operatória e o aspecto ecocardiográfico pós-operatório permitem concluir que essa medida, isoladamente, foi suficiente e adequada para a seleção do homoenxerto nesse grupo de pacientes.

A fixação dos músculos papilares foi realizada de forma látero-lateral, conforme preconizado por ACAR et al. (10). Apesar da criopreservação ser método eficiente na manutenção da viabilidade celular das cúspides, seria ilusório supor o mesmo para os músculos papilares. Trabalhos experimentais demonstraram que os músculos papilares necrosam após o implante, estando a fixação definitiva na dependência do processo fibrótico de cicatrização (3-5). A experiência de ACAR et al. (10) parece confirmar a segurança do método.

Técnicas alternativas para a fixação dos músculos papilares ficam em maior dependência de suportes mecânicos adicionais, tais como retalhos de Teflon, tiras de pericárdio do paciente ou heterólogo ou, ainda, de suturas transfixantes na parede ventricular (3, 7, 8, 11, 12, 23, 25, 26). A incidência de disfunção valvar com esses métodos foi invariavelmente maior e não nos parecem recomendáveis. Da mesma forma, a fixação artificial das cordas tendíneas em placa de pericárdio bovino pode criar pontos de menor resistência e propiciar a rotura cordal nessas novas inserções, conforme demonstrado por MOREA et al. (27). Trabalho experimental foi publicado por VETTER et al. (28), utilizando homoenxertos reforçados com neocordas de Gore-Tex. Resultados clínicos com esse tipo de enxerto não são ainda disponíveis.

A necessidade do emprego de anéis mitrais de sustentação nesse tipo de operação é controversa. Segundo ACAR et al. (10), a anuloplastia mitral com anel semi-rígido de Carpentier deve ser utilizada sistematicamente, pois permite uma precisa adaptação do anel ao tamanho do homoenxerto, diminui o estresse mecânico na linha de sutura anular, além de propiciar maior superfície de coaptação das cúspides, diminuindo as tensões no aparelho subvalvar. A presença de anel rígido, entretanto, pode ter efeitos deletérios sobre a função ventricular. Enquanto DURAN (8) defende o emprego de anéis flexíveis para essa finalidade, outros autores não realizam qualquer tipo de anuloplastia.

Os resultados funcionais por nós observados foram muito satisfatórios. Os gradientes transvalvares foram bastante baixos, as velocidades de fluxo próximas às fisiológicas e a média das áreas valvares foi de 3,1 cm2. Esses resultados são similares aos reportados por vários autores e, certamente, melhores que os obtidos com outros tipos de substitutos valvares. O grau de insuficiência valvar observado não foi importante e tem se mantido estável durante o período de seguimento.

A avaliação da função ventricular esquerda demonstrou que, com a manutenção da continuidade ânulo-papilar, foi possível preservar a contratilidade miocárdica de forma adequada, mesmo após o implante de anel rígido de anuloplastia.

O desenvolvimento de um banco de criopreservação de valvas homólogas foi fundamental para a aplicação sistemática dessa operação. Através de técnicas adequadas de dissecção, tem sido possível aproveitar os enxertos aórtico, mitral e pulmonar do mesmo coração. Entretanto, a disponibilidade de homoenxertos ainda hoje constitui fator limitante.

Em conclusão, os resultados preliminares com a substituição da valva mitral por homoenxerto mitral foram bastante animadores. Apesar de tecnicamente complexa, os resultados funcionais e ecocardiográficos foram adequados, com amplo orifício valvar, mínimo grau de insuficiência, adequada preservação da função ventricular e ausência de morbidade relacionada ao enxerto. Espera-se que, com maior experiência, alguns aspectos técnicos ainda um tanto subjetivos, tais como a medição valvar, posicionamento geométrico do enxerto, necessidade e tipo de anuloplastia a ser empregada, possam ter respostas mais objetivas. Uma vez confirmada a boa durabilidade desse enxerto, suas indicações serão mais abrangentes.

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