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EDITORIAL

Circulação Extracorpórea

Domingo M Braile

DOI: 10.1590/S0102-76382010000400002

A cirurgia cardíaca com Circulação Extracorpórea representou uma das grandes conquistas médicas e da área biológica no século XX [1-6]. Ela pode perfeitamente ser comparada à conquista do espaço sideral e à chegada do homem à Lua.

Podemos, também, confrontá-la com a evolução desencadeada pelo domínio do átomo, que permitiu a produção de grandes quantidades de energia a partir da matéria.

Infelizmente, a conquista da energia atômica também permitiu ao homem a criação de armas destruidoras, que colocam em risco a própria integridade do planeta.

Ao contrário desta, o advento da Circulação Extracorpórea criou novas possibilidades para a cura de doenças cardíacas, jamais imaginadas na primeira metade do século passado.

A possibilidade de corrigir defeitos do coração sob visão direta foi sonho antigo, perseguido por muitos com insistência, apesar dos sucessivos fracassos, que frustraram quantos se aventuraram a substituir a função de bomba do coração e as funções ventilatória e respiratória dos pulmões.

Hoje, fica difícil aos mais jovens avaliarem as incontáveis dificuldades superadas para que um dia o cirurgião pudesse desviar todo o sangue do paciente para um circuito externo e mantê-lo vivo.

Isto possibilitou adentrar as cavidades cardíacas, em um campo quase exangue e corrigir defeitos congênitos [7- 10] ou adquiridos [11-15], que limitavam a vida daqueles que tivessem a desventura de apresentar tais problemas no órgão propulsor do sangue e da própria vida.

Poderia fazer aqui um retrospecto de todas as experiências realizadas por cientistas de renome, antes que os conhecimentos e as condições materiais permitissem que a batalha fosse vencida.

A história da cirurgia cardíaca é uma verdadeira saga que, ao trilhar o caminho para esta conquista de alto alcance científico e social, teve que dominar preconceitos e tabus [1-6].

No bojo desta nova tecnologia, vieram muitos outros conhecimentos relacionados à fisiologia da circulação, às reações do organismo às agressões cirúrgicas e ao domínio do saber em relação ao meio interno, no qual todas as nossas células estão imersas e onde o metabolismo se desenvolve, com a produção da energia que nos faz viver [16-27]. Destes estudos, resultou também a compreensão da homeostase, complexo sistema de auto-regulação para manter os múltiplos parâmetros vitais em níveis normais, durante a produção da referida energia.

Deste processo resultam catabólitos, calor, gás carbônico, ácidos, água e outros elementos químicos que têm que ser transformados e/ou eliminados.

Isto permitiu grande avanço da Medicina e da pesquisa, não se restringindo apenas ao sistema cardiovascular, mas beneficiando de forma conspícua o conhecimento que se fazia necessário em quase todos os campos da Biologia.

Cito, como exemplos, a compreensão das variações dos equilíbrios ácido-básico e hidrosalino, indispensáveis para se conseguir a estabilidade destes sistemas durante a Circulação Extracorpórea.

Estes conhecimentos beneficiaram não só a cirurgia cardiovascular, mas todas as especialidades, criando conceitos básicos para os cuidados aos pacientes durante as intervenções cirúrgicas de grande ou pequeno porte, incluindo o subsequente período pós-operatório. Dominado este campo da fisiologia, foi possível entender as consequências dos desequilíbrios ácido-básico e hidrosalino em estados críticos, como o choque cardiogênico, o choque séptico e tantos outros. Torna-se também fundamental para a equipe multidisciplinar que realiza a cirurgia cardíaca - compreendendo cirurgiões cardíacos, anestesiologistas, perfusionistas, intensivistas, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, enfim, todo o grupo de apoio - entender que é da experiência acumulada em anos de prática e estudos dentro deste atraente campo que resulta a segurança oferecida hoje aos pacientes.

O perfusionista, em particular, tem grande responsabilidade durante o procedimento cirúrgico, pois virtualmente terá em suas mãos e sob seus olhos a vida do paciente que está sendo operado.

Neste período em que a circulação sanguínea e a respiração estão sendo mantidas artificialmente, a fisiologia orgânica deve ser monitorada e ajustada para ficar dentro dos mais estritos parâmetros da normalidade.

O estudo das trocas gasosas é fundamental para a condução correta da Circulação Extracorpórea. Sem conhecê-la de forma adequada, será impossível manter o paciente em condições perfeitas de fornecimento de oxigênio e substratos, seguidos da retirada de gás carbônico e catabólitos da forma mais perfeita possível. O controle da temperatura durante toda a operação é outro ponto de grande importância e suas implicações, tanto no período de hipotermia, muitas vezes necessária para diminuir o metabolismo, como no período do aquecimento, deverão fazer parte dos conhecimentos sólidos do perfusionista e de toda a equipe responsável pela condução do ato cirúrgico.

A hipotermia profunda com parada circulatória total é um procedimento que transcende a nossa imaginação, dando-nos a possibilidade de parar totalmente a circulação por uma hora ou mais, e depois do aquecimento, conduzido com critérios rígidos, ver o paciente voltar ao seu estado de metabolismo homeotérmico e à vida.

Esta técnica permite restaurar lesões em cardiopatias congênitas complexas, em crianças de muito baixo peso ou, de forma geral, em áreas de difícil acesso, dando ao cirurgião a oportunidade de trabalhar com campo exangue na correção de defeitos, que de outra forma seriam impossíveis de corrigir.

O estudo dos equipamentos e o conhecimento de cada detalhe do seu funcionamento são fundamentais [28-30], não só para o perfusionista, como para toda a equipe, que deverá trabalhar em perfeito entrosamento, de forma que nenhum detalhe escape à observação correta e instantânea do responsável, evitando, assim, colocar em risco a vida do paciente ou sua integridade física ou mental [31,32].

A entrada de ar no circuito arterial é um descuido desastroso, dependente exclusivamente da atenção permanente do perfusionista, que pode ser eventualmente auxiliado neste mister por sensores que detectem bolhas, interrompam o bombeamento do sangue e soem alarmes.

Na verdade, a cirurgia cardíaca com Circulação Extracorpórea é um procedimento de alta complexidade e assim deve ser entendido.

Para que os profissionais possam realizá-lo com segurança, devem ter conhecimentos profundos, fortemente incorporados ao seu raciocínio, de forma que as decisões sejam automáticas e imediatas.

Para adquirir estas habilidades, duas premissas devem ser contempladas: conhecimentos teóricos sólidos e treinamento exaustivo em serviços que tenham condições de ensinar com competência, responsabilidade e segurança os profissionais que se dediquem às funções específicas nesta área de atuação.

Eu tive o privilégio de viver quase toda a evolução da Cirurgia Cardíaca nestes últimos 50 anos e posso garantirlhes que participar desta "aventura" foi uma vivência que não pode ser descrita em simples palavras.

Foi uma experiência admirável, que deixou em mim a marca indelével de uma das maiores conquistas vitoriosas, no campo da Medicina e Cirurgia.

Permanece, contudo, o desafio da suprema regra de ouro da Cirurgia Cardíaca: No dia seguinte à operação, o paciente deverá estar estável, acordado, alerta e extubado. O eventual sangramento já terá cessado, a diurese estará dentro dos parâmetros normais, assim como os exames de rotina. Ele está pronto para ser transferido da UTI para o quarto. Mais um paciente foi salvo e nossa missão foi cumprida!

Prof. Emérito, Livre Docente de Cirurgia Cardíaca da FAMERP e UNICAMP, Editor da Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular.


REFERÊNCIAS

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