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ARTIGO ORIGINAL

Efeitos da N-acetilcisteína no precondicionamento isquêmico: estudo em corações isolados de ratos

Denoel Marcelino de OliveiraI; Eros Silva GomesII; Tofy MussivandIII; Alfredo Inácio FiorelliIV; Otoni Moreira GomesV

DOI: 10.1590/S0102-76382009000100006

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar se a N-Acetilcisteína (NAC) altera o Precondicionamento Isquêmico (PC) em corações isolados de ratos usando apenas um ciclo de PC. MÉTODOS: Freqüência Cardíaca (FC), Fluxo Coronariano (FLC) e Contratilidade Miocárdica (dP/dt) foram registradas em 30 corações de ratos Wistar. Após anestesia, os corações foram perfundidos em sistema de Langendorff com solução de Krebs-Hensleit (K-H), equilibrada (95% de O2 e 5% de CO2). GI: Controle (n=6); GII: 20 min. isquemia (n=6); GIII: PC (n=6); GIV 50 µg/ml/min NAC antes do PC (n =6); GV: 100 µg/ml/min NAC antes do PC (n=6). Todos os parâmetros foram mensurados após 15 minutos de estabilização (T0) e T3, T5, T10, T15, T20, T25 e T30 minutos de reperfusão. Significância estatística foi considerada quando P<0,05. RESULTADOS: Foram observadas alterações na FC comparando GI com GII em T20 e T25 e comparando GI com GIII e GIV com GV em T10 e T20 (P<0,05). FLC foi diferente comparando GI com GII em T3 e T5, GI com GIV em T10 e GI com GV em T10 e T25 (P<0,05). dP/dt foi semelhante comparando GIII com GI e GV. GIII apresentou maior dP/dt que GIV, mas sem diferença estatística (P>0,05). dP/dt foi maior no GV comparado com GIV, mas com diferença estatisticamente significativa somente em T30. CONCLUSÃO: Os corações precondicionados tiveram melhor dP/dt, sendo alteradas pelo uso de NAC no GIV e não alteradas no GV.

ABSTRACT

Objective: The aim of this study is to assess if N-Acetylcysteine (NAC) changes the Ischemic Preconditioning (IP) in isolated rat hearts using only one cycle of IP. Methods: Heart Rate (HR), Coronary Flow (CF) and Myocardial Contractility (dP/dt) were registered in 30 Wistar rat's hearts. After anesthesia the hearts were removed and perfused with Krebes-Hensleit equilibrated solution with 95% of O2 and 5% of CO2 according Langendorff's method. GI: Control (n=6); GII: 20 min. ischemia (n=6); GIII: IP (n=6); GIV 50 µg/ml/min NAC before IP (n =6); GV: 100 µg/ml/min NAC before IP (n=6). Parameters were measured after 15 min. of stabilization (T 0) and T3, T5, T10, T15, T20, T25 and T30 min. after reperfusion. Statistical significance was considered when P<0.05. Results: There were changes on HR comparing GI with GII at T20 and T25 and comparing GI with GIII, GIV with GV at T10 and T20 (P<0.05). CF was different comparing GI with GII at T3 and T5, GI with GIV at T10 and GI with GV at T10 and T25 (P<0.05). Myocardial Contractility was similar comparing GIII with GI and GV. GIII had higher dP/dt than GIV but without statistical difference (P>0.05). dP/dt was higher in GV than GIV but with statistically significant difference only at T30. Conclusion: dP/dt was better in preconditioned hearts and was changed if using NAC in GIV. The use of NAC didn't change the effects of preconditioning on myocardial contractility in GV.
INTRODUÇÃO

A proteção miocárdica durante cirurgia cardíaca tem sido o foco de pesquisas básicas e clínicas nos últimos 50 anos [1]. Em 1955, Lewis foi o primeiro a realizar cirurgia intracardíaca em humanos com uso de hipotermia. Melrose propôs o uso de parada cardíaca utilizando infusão de potássio na aorta ascendente. Desde então, várias táticas e técnicas de proteção miocárdica foram desenvolvidas.

Murry et al. [2] descreveram os mecanismos do precondicionamento isquêmico (PC), ao demonstrarem que curtos episódios de isquemia e reperfusão anteriormente a um evento isquêmico prolongado reduziriam o tamanho do infarto e melhoravam a função cardíaca. Em estudos experimentais, esse mecanismo é considerado o meio natural mais potente de cardioproteção [3]. Os trabalhos com PC em cirurgia cardíaca demonstraram resultados conflitantes, porém a maioria confirmou que o PC é um adjunto efetivo na proteção miocárdica [3-5].

Estudos clínicos em cardiologia e cirurgia cardíaca demonstraram tendência para cardioproteção com uso de adenosina, porém os efeitos não são tão evidentes como os observados em pesquisas experimentais [3,4]. Morris e Yellon [6] ressaltaram a existência de um limiar de estimulação, com a necessidade de ativação não só de receptores de adenosina, mas também de bradicinina e de opióides. Pesquisas e investigações sobre os mecanismos moleculares do PC poderão comprovar técnicas ou drogas aplicáveis e com benefício clínico em cirurgia cardíaca.

Os mecanismos bioquímicos de estimulação do PC envolvem uma variedade de receptores G da membrana citoplasmática que levam à translocação de Proteína Cinase C (PKC) do citoplasma para o sarcolema [3]. Nakano et al. [7] demonstraram que a translocação da PKC está relacionada com a ativação do canal itoK+ATP por meio da estimulação de cinases posicionadas logo abaixo da Proteína Cinase Mitogênica Ativada p38 (MAPK). A regulação do volume mitocondrial e transporte de elétrons são os principais mecanismos responsáveis pela manutenção de sua função e estão interligados à abertura dos canais de itoK+ATP [8].

A liberação de Radicais Livres de Oxigênio (RLO) é causa de lesão miocárdica na reperfusão após isquemia. Paradoxalmente, Pain et al. [9] and Forbes et al. [10] demonstraram que a liberação de espécies reativas de oxigênio (RLO) participa do mecanismo protetor do PC, através da abertura dos canais itoK+ATP e ativação de cinases.

N-acetilcisteína é classificado como antioxidante, porém tem ampla utilidade clínica como agente mucolítico, como antídoto para intoxicação por acetaminopheno, na prevenção de disfunção renal por uso de radiocontrastes e como potencializador dos efeitos hemodinâmicos da nitroglicerina. Sochman [11] propôs quatro possíveis mecanismos antioxidantes para a N-acetilcisteína: (1) ligação direta, e eliminação de radicais livres por reação de Redox (cisteína-cistina); (2) modulação do endotélio lesado; (3) produção de disulfito durante reação do grupo sulfídrico da N-acetilcisteína com o da membrana enzimática e como (4) precursor de glutationa.

Forbes et al. [10] demonstraram que a N-acetilcisteína bloqueava a melhoria da função contrátil pós-isquêmica após indução do PC com Diazóxido, um abridor de canais K+ATP. Chen et al. [12] observaram que a N-acetilcisteína bloqueava a perda de glutationa e o efeito protetor do PC, porém seu protocolo com quatro ciclos de 5 minutos de isquemia e reperfusão resultou em atordoamento do miocárdio antes do período sustentado de isquemia. Pain et al. [9] propuseram que os RLO tinham um papel paradoxal na proteção oferecida pelo PC, estimulando-nos a estudar os efeitos do antioxidante N-acetilcisteína sobre os mecanismos do PC em corações isolados de ratos no modelo de Langendorff.

A N-acetilcisteína tem ampla utilização clínica, e é empregada em vários pacientes submetidos a cirurgia cardíaca. Os estudos de Forbes et al. [10] e Chen et al. [12] demonstraram bloqueio dos efeitos protetores do PC pela N-acetilcisteína, porém Forbes et al. [10] ocasionaram lesão miocárdica com os ciclos excessivos de isquemia e reperfusão e Chen et al. [12] não estimularam o PC mecanicamente, mas com diazóxido. Desta forma, o presente estudo tem o objetivo de estudar os efeitos da N-acetilcisteína sobre a frequência cardíaca (FC), fluxo coronariano (FLC) e contratilidade do miocárdio (dP/dt) em corações isolados de ratos submetidos a somente um ciclo de PC isquêmico mecânico.


MÉTODOS

Os animais foram tratados de acordo com the Guide for the Care and Use of Laboratory Animals (NIH publication No. 85-23, revised 1985). Foram seguidos os princípios éticos para o uso de animais de laboratório determinados pelo Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (COBEA) e Sociedade Brasileira de Ciência em Animais de Laboratório.

Trinta corações de ratos da raça Wistar foram estudados. Todos animais eram adultos, com peso variando de 220 a 330 gramas. Os animais foram fornecidos pelo biotério da Fundação Cardiovascular São Francisco de Assis. O estudo foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Fundação.

Os animais foram submetidos a anestesia inalatória com éter sulfúrico em campânula fechada. Os grandes vasos foram bem expostos por uma toracotomia anterior e anticoagulação realizada com injeção de 500 UI de heparina sódica. A aorta ascendente foi dissecada e isolada com fio de algodão 2-00, sendo então canulada com cateter 20G, tendo o cuidado de preservar a valva aórtica e óstios coronarianos. A drenagem do ventrículo esquerdo foi realizada pela introdução de cateter 18G multiperfurado, da aurícula esquerda até o ápice do ventrículo esquerdo, passando pela valva mitral. Cuidado especial foi tomado para evitar lesões dos vasos coronarianos, como descrito por de Oliveira et al. [13].

Após 15 minutos de estabilização, um balão de látex era posicionado dentro do ventrículo esquerdo através de atriotomia esquerda e insuflado com água, mantendo uma pressão diastólica de 8 + 2 mmHg. Isquemia global foi criada pela interrupção do perfusato na linha de fluxo, mantendo o balão desinsuflado. O balão de látex era conectado por uma extensão flexível a um transdutor de pressão. Pressões sistólica e diastólica, frequência cardíaca (FC) e eletrocardiograma (ECG) foram registrados, em biomonitor e impressora (Mod. DH 073, BESE - Bioengenharia, Belo Horizonte, MG.). O fluxo coronariano foi mensurado pela coleção do efluente durante o período de um minuto (Figura 1).


Fig. 1 - Desenho esquemático do sistema descartável de estudo de coração isolado pelo método de Langendorf. A solução de perfusão de Krebs-Hensleit é pressurizada pelo borbulhamento de carbogênio no reservatório. Sob uma pressão mantida em 100 cm de água, a solução perfunde o coração isolado com temperatura de 37+ 0,5ºC após passar pelo permutador de calor. Um balão de látex é posicionado dentro do ventrículo esquerdo, com pressão diastólica mantida em 8+ 2 mmHg, para monitorização da contratilidade e registro em impressora. Uma via de infusão de drogas é posicionada anteriormente ao coração isolado



Os resultados foram expressos em porcentagem dos valores de controle (média + desvio padrão). O teste t de Student foi usado para avaliar significância estatística de diferenças entre observações pareadas. A diferença foi considerada estatisticamente significativa quando P<0,05.

A comparação de médias entre os grupos foi realizada usando teste t de Student e teste de Bartlett para avaliar homogeneidade de variância. ANOVA foi aplicada quando havia homogeneidade de variância e o teste não-paramétrico de Kruskal-Wallis, quando as variáveis não se apresentavam homogêneas no teste de Bartlett.

Protocolos dos grupos estudados

O Grupo Controle (GI) foi constituído por seis corações preparados pelo método descrito e perfundidos com solução de Krebs-Henseleit a 37ºC durante 15 minutos, para estabilização. Depois desse período, o balão de látex foi inserido no ventrículo esquerdo e o coração perfundido durante 30 minutos. Todos os grupos tiveram a frequência cardíaca, pressão ventricular e fluxo coronariano medidos com 3, 5, 10, 15, 20, 25 e 30 minutos de reperfusão. O Grupo de Isquemia (GII) foi constituído por seis corações submetidos a 20 minutos de isquemia global após o período de estabilização e todos parâmetros foram mensurados durante a reperfusão, como descrito anteriormente. O Grupo de Precondicionamento (GIII) foi constituído por seis corações submetidos a cinco minutos de isquemia global, seguidos de cinco minutos de reperfusão anteriormente à isquemia de 20 minutos. Todos os parâmetros foram mensurados nos períodos de reperfusão descritos anteriormente. O Grupo IV (GIV) recebeu infusão de 50 mg/ml/min e o Grupo V (GV) 100 mg/ml/min de N-acetilcisteína por um minuto na linha de infusão próxima ao coração, anteriormente ao protocolo de precondicionamento (Figura 2).


Fig. 2 - Esquema dos protocolos de perfusão com respectivas ações temporais. Isq - isquemia, Rep - reperfusão



RESULTADOS

Pesos dos animais e dos corações


O peso dos animais variou de 220,0 a 3300 gramas. A média do peso dos corações pode ser vista na Tabela 1, sendo esta estatisticamente maior no grupo III, se comparado aos demais (P<0,05).





Variação da frequência cardíaca

A Freqüência Cardíaca no Grupo I (controle) oscilou com valores inferiores ao tempo inicial, mas sem diferenças estatísticas entre os períodos quando comparadas ao T0 (P>0,05). No Grupo II, a média da Freqüência Cardíaca só apresentou decréscimo estatisticamente significativo no T20 (P<0,05). No Grupo III (Precondicionamento Isquêmico), houve diferença estatística no T10 e T20 se comparadas ao T0 (P<0,05). O Grupo IV apresentou decréscimo significativo em T10, T15 and T20 se comparadas ao T0. No Grupo V, o valor mais baixo apresentou diferença estatística no T30 (P<0,05).

Comparando a frequência cardíaca do Grupo I com a do Grupo II, ocorreu diferença estatística somente em T20 e T25 (P<0,05). Os Grupos III, IV e V, quando comparados com o Grupo I, mostraram diferença estatística em T10 e T20 (P<0,05) (Figura 3).


Fig. 3 - Variação percentual da freqüência cardíaca em batimentos por minuto, dentro dos períodos estudados em cada grupo



Fluxo coronariano

O fluxo coronariano no Grupo I permaneceu estável durante o estudo, com diferença estatística somente no T5 (P<0,05). No Grupo II (20 minutos de isquemia), os valores do fluxo coronariano foram diminuindo durante os períodos com diferença estatisticamente significativa em todos os períodos se comparadas ao T0 (P<0,05). No Grupo III (precondicionamento isquêmico), foram observadas diferenças estatísticas somente no T25, quando comparado ao T0 (P<0,05). O fluxo coronariano no Grupo IV foi diminuindo, apresentando diferenças estatísticas significativas em todos os períodos, se comparados ao T0 (P <0,05). No Grupo V, observou-se diferença estatística no T25 e T30, se comparados com T0 (P <0,05).

Comparando o fluxo coronariano do Grupo I com o do Grupo II, ocorreram diferenças estatísticas somente em T3 e T5, com P<0,05. Não ocorreram diferenças entre os Grupos I e III. O fluxo coronariano do Grupo I foi estatisticamente diferente do Grupo IV no T10. O Grupo I, quando comparado ao Grupo V, mostrou diferenças em T10 e T25. Outras comparações entre os Grupos não demonstraram diferenças estatísticas no fluxo coronariano (Figura 4).


Fig.4 - Variação percentual do fluxo coronariano em mililitros por minutos, dentro dos períodos estudados em cada grupo



Contratilidade miocárdica (dP/dt)

A contratilidade miocárdica (dP/dt) no Grupo I foi diferente estatisticamente somente no T30, se comparado ao T0 (P<0,05). A dP/dt nos Grupos II e IV ficou estatisticamente deprimida em todos os períodos se comparados ao T0 (P<0,05). A dP/dt no Grupo III e V não apresentou diferenças estatísticas entre os períodos estudados.

A contratilidade miocárdica foi estatisticamente deprimida durante todos os períodos, comparando os Grupos I e Grupo III com o Grupo II (P<0,05). O Grupo do Precondicionamento Isquêmico (GIII) apresentou dP/dt estatisticamente semelhante ao Grupo controle (GI) e aos Grupos tratados com N-acetilcisteína (GIV e GV), P>0,05. Os Grupos GIII, GIV e GV apresentaram contratilidade estatisticamente superior ao GII, em todos os períodos estudados (P<0,05). O Grupo IV (50mg/ml/min N-acetilcisteína e PC) apresentou dP/dt estatisticamente deprimida (P<0,05) em T10, T15 e T30, quando comparadas ao Grupo controle e superior ao Grupo II em T3 e T5. O Grupo V (100mg/ml/min N-acetilcisteína e PC) teve maior contratilidade miocárdica que o Grupo II, com diferença estatística em todos os períodos e esteve deprimida nos períodos T10 e T15, se comparadas com o Grupo controle (Figura 5) (Tabela 1).


Fig.5 - Variação percentual da contratilidade miocárdica (dP/dT) em milímetros de mercúrio por segundo, dentro dos períodos estudados em cada grupo



DISCUSSÃO

Cardioproteção durante cirurgia cardíaca continua sendo um tópico que exige muitos estudos [1]. Desde a descrição do PC por Murry et al. [2], em 1986, muitos pesquisadores têm tentado desvendar os mecanismos e vias deste fenômeno [3-10]. Se o PC é considerado a forma natural mais poderosa de cardioproteção conhecida em pesquisas experimentais [3], por que não usar este forte mecanismo protetor em cirurgia cardíaca? Alguns estudos clínicos mostraram efeitos protetores relacionados com a estimulação de vias do PC pelo uso de adenosina e sevoflurano durante cirurgia cardíaca [4,5]. Entretanto, a elucidação de todo o mecanismo poderá demonstrar um novo mediador, canal e ou um efetor final que possa estimular clinicamente os efeitos cardioprotetores poderosos do PC.

Em 1997, Garlid et al. [8] descreveram o canal itoK+ATP como efetor final do PC e, em 2000, Pain et al. [9] descobriram que o canal itoK+ATP era um desencadeador do PC pela geração de (RLO). Jeroudi et al. [14] estabeleceram que altos níveis de RLO eram prejudiciais para o tecido miocárdico. De outra forma, doses moderadas de H2O2 e O2- demonstraram estimular um efeito cardioprotetor semelhante ao observado no PC, como demonstrado por Baines et al. [15]. No presente estudo, o mecanismo protetor do PC foi diminuído pela administração de 50mg/ml/min do antioxidante (N-acetilcisteína), observado pela depressão da dP/dt do Grupo IV, se comparada ao Grupo III.

Chen et al. [12] demonstraram que a N-acetilcisteína bloqueava os efeitos do PC. Entretanto, seu protocolo de precondicionamento com quatro ciclos de 5 minutos de isquemia seguidos por 5 minutos de reperfusão resultaram em atordoamento miocárdico, stunning, reduzindo a contratilidade do ventrículo esquerdo para 72% do valor inicial, no final do quarto ciclo de reperfusão. No presente estudo, somente um ciclo de PC demonstrou oferecer cardioproteção, comparando a dP/dt dos Grupos II e III com o grupo controle (GI).

A ação protetora da N-acetilcisteína sobre o miócito na injúria de reperfusão é devida aos seus efeitos antioxidantes e de captura de radicais livres de oxigênio, sendo clinicamente utilizada em eventos coronarianos instáveis, como no infarto agudo do miocárdio [11]. Hsu et al. [16] reportaram que a N-acetilcisteína aumenta a produção de óxido nítrico (ON) em estudos experimentais e Delgado et al. [17] demonstraram proteção do endotélio estimulada pelo uso de N-acetilcisteína. Isto confirma a proteção obtida pelo uso de N-acetilcisteína na injúria de reperfusão e liberação de ON com a potencialização dos efeitos da nitroglicerina observadas em estudos prévios [11]. Singh et al. [18] indicaram que agentes redutores, como a glutationa, podem estimular o armazenamento e transporte de ON. O aumento da produção de ON com o uso de N-acetilcisteína pode explicar porque o Grupo V não apresentou alteração tão significativa da dP/dt, apesar de sua ação antioxidante.

Embora o ON tenha sido relacionado com o desencadeamento e com o efetor final do precondicionamento tardio, evidências da sua participação no precondicionamento clássico são limitadas, senão controversas, como relatado por Nakano et al. [19]. Bell e Yellon [20] mostraram que, no precondicionamento clássico, o ON parece baixar o limiar para a proteção observada, mesmo sabendo não ser ele diretamente um deflagrador do PC clássico.

Em 1993, Kuzuya et al. [21] reportaram uma fase tardia de proteção miocárdica, menos intensa, porém mais prolongada e que durava até 72 horas. Eles atribuíram esse efeito ao incremento das enzimas antioxidantes, como MnSOD. Esta fase tardia foi denominada de Segunda Janela de Proteção (SJP), em inglês, Second Window of Protection. A SJP confere proteção pela síntese, modificação e compartimentalização de proteínas.

Hoshida et al. [22] foram os primeiros a demonstrar que o aumento do sistema de enzimas antioxidantes como a Superóxido Dismutase (MnSOD) poderiam estimular efeitos protetores tardios da isquemia em corações caninos. Os dois principais sistemas de enzimas antioxidantes do coração são a Superóxido Dismutase (SOD) e Glutationa Peroxidase, ambas estimuladas pelo uso de N-acetilcisteína, como descrito anteriormente.

Desde 1994, Baxter e Yellon [23] descrevem o estímulo de receptores de Adenosina 1 como o principal desencadeador da SJP e, em 1999, inferiram que o canal de K+ATP mediava os efeitos cardioprotetores da ativação dos receptores de Adenosina A1. Esse fato apóia a teoria de que a liberação de RLO pela ativação dos canais de K+ATP sensíveis é um processo de cardioproteção que se inicia após 12 horas do estímulo e pode durar até 72 horas.

Os resultados da contratilidade do miocárdio no Grupo IV confirmam a hipótese que RLO são importantes no estímulo inicial da proteção do PC clássico. O período de proteção do precondicionamento clássico é bastante curto, durando somente de uma a duas horas em animais anestesiados e é perdido ao redor de duas a quatro horas em estudos com coelhos acordados [24]. Takano et al. [25] demonstraram que a SJP do PC protege tanto contra o atordoamento do miocárdio como contra a o infarto, e pode ser estimulada pelo uso de doadores de ON.

Se estamos procurando drogas que possam proteger o coração durante a anóxia cirúrgica, tais drogas necessitam incorporar também a segunda fase do mecanismo, que dura entre 12 e 72 horas. A SJP é um forte adjunto, pois poderá também proteger contra os eventos isquêmicos no período de pós-operatório.

O uso de dose mais alta de N-acetilcisteína, no presente estudo, demonstrou não abolir a fase clássica do Precondicionamento Isquêmico, provavelmente em face do seu efeito sobre o incremento de ON, o qual deve baixar o limiar de proteção do PC. Tal efeito foi observado mesmo não sendo o ON um deflagrador direto do precondicionamento precoce [20]. Entretanto, seus efeitos sobre a SJP podem ser enormes, não só pela liberação de ON, mas também pelo incremento de enzimas antioxidantes [25].


CONCLUSÃO

A utilização de apenas um ciclo de isquemia e reperfusão é eficaz para desencadear proteção miocárdica, PC, nesse modelo experimental.

A administração de 50µg/ml/min de N-acetilcisteína inibiu de forma significativa o mecanismo de precondicionamento isquêmico estimulado por um ciclo de 5 minutos de isquemia e reperfusão.

A administração de 100µg/ml/min de N-acetilcisteína não alterou de forma significativa o estímulo do PI. Possivelmente, a dose dobrada de N-acetilcisteína compensou a inibição antioxidante do PC, pelos efeitos adjuntos de proteção endotelial, liberação de ON com diminuição do limiar do PC e estímulo de enzimas antioxidantes.


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Article receive on terça-feira, 22 de julho de 2008

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