Article

lock Open Access lock Peer-Reviewed

3

Views

RELATO DE CASO

Puérpera com trombose de prótese mecânica e estenose supravalvar aórtica adquirida

Ricardo Adala Benfatti0; Carlos Roberto Martins Júnior0; Guilherme Viotto Rodrigues da Silva0; José Carlos Dorsa Vieira Pontes0

DOI: 10.1590/S0102-76382011000200022

RESUMO

A hipercoagulabilidade sanguínea proporcionada na gravidez aumenta consideravelmente a incidência de trombose de valvas mecânicas. A estenose supravalvar aórtica adquirida é extremamente rara. Relata-se o caso de uma puérpera imediata, portadora de prótese mecânica aórtica e estenose supravalvar aórtica adquirida, submetida à cirurgia cardíaca de emergência, com instabilidade hemodinâmica grave, por meio de técnica operatória adaptada para a correção da estenose supravalvar aórtica, com evolução clínica e resultados ecocardiográficos pós-operatórios satisfatórios.

ABSTRACT

The blood hypercoagulability in pregnancy increases significantly the incidence of thrombosis of mechanical valves. Acquired supravalvular aortic stenosis is extremely rare. We report the case of an immediate postpartum patient with aortic mechanical prostheses and acquired supravalvular aortic stenosis who underwent emergency heart surgery, with severe hemodynamic instability, using adapted surgical technique for correction of supravalvular stenosis with satisfactory clinical and echocardiography results.

 

 

INTRODUÇÃO

A gravidez, dentre inúmeras modificações fisiológicas, proporciona um estado de hipercoagulabilidade sanguínea aumentando consideravelmente a incidência de trombose de próteses mecânicas (TPM), proporcionando taxas de 7% a 23% de tromboembolismo, comprovando-se assim as dificuldades na condução da anticoagulação nessas pacientes [1].

A estenose supravalvar aórtica (ESA) congênita é uma condição rara, usualmente observada em jovens com síndrome de Williams, a qual pode ser encontrada em sua forma localizada (80%) ou difusa (20%), entretanto, sua forma adquirida é extremamente rara [2].

Devido à baixa incidência de mulheres em idade fértil portadoras de próteses mecânicas em associação com estenose supravalvar aórtica adquirida, o objetivo deste relato é demonstrar o caso de uma puérpera submetida à cirurgia cardiovascular de emergência devido à trombose aguda de prótese mecânica em posição aórtica com achado transoperatório de estenose supravalvar aórtica adquirida, não evidenciado pelo ecocardiograma pré-operatório, à beira do leito, com uma técnica operatória adaptada com resultados imediatos satisfatórios.

 

RELATO DO CASO

Gestante S.S.A., 26 anos, GIII PI AI, com idade gestacional de 36 semanas e 4 dias foi admitida no pronto atendimento obstétrico do Hospital Universitário da Faculdade de Medicina Dr. Hélio Mandetta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, às 2h12 do dia 14/5/2010, com história de dispneia aos esforços há 15 dias com tosse produtiva mucopurulenta e febre baixa, que evoluiu para ortopneia e piora progressiva, associada a vômitos incoercíveis serosos e sensação de morte iminente.

Como antecedente relevante, realizou havia cinco anos troca valvar aórtica mecânica duplo folheto, número 19, em outro serviço de cirurgia cardiovascular devido a endocardite bacteriana.

Ao exame físico encontrava-se sonolenta, Glasgow 13, pupilas simétricas e fotorreagentes, com PA: 120 x 80 mmHg, FC: 130 bpm, FR: 36 irpm, hipocorada ++/4+ e turgência jugular patológica grau IV. À ausculta pulmonar e cardíaca, evidenciou-se murmúrio vesicular presente e diminuído com crepitância global nos dois hemitórax, bulhas hiperfonéticas, ritmo taquicárdico em três tempos (B3) com presença de sopro panssistólico +++/6+ com epicentro em foco aórtico. Ao exame obstétrico, verificou-se BCF: 142 bpm, altura uterina de 31 cm, dinâmica uterina ausente, colo fechado e posterior, situação fetal longitudinal, dorso à esquerda e apresentação cefálica.

A radiografia torácica evidenciou padrão intersticial bilateral em bases e terços médios, somado a padrão alveolar em base de hemitórax direito. O eletrocardiograma demonstrava taquicardia sinusal, com sobrecarga de ventrículo esquerdo. Solicitou-se hemocultura, aventando-se endocardite infecciosa devido à história.

Diante do exposto, administrou-se furosemida endovenosa, dinitrato de isossorbida sublingual, morfina, enoxaparina dose plena e antibioticoterapia (Ceftriaxone + Azitromicina), encaminhando a paciente rapidamente para o Centro Obstétrico para realização de parto de emergência.

Às 15h do mesmo dia, a equipe de ginecologia e obstetrícia optou pela realização do parto cesariana e laqueadura com raquianestesia. No pós-operatório imediato, a paciente evoluiu com quadro de choque, edema agudo de pulmão e anasarca, necessitando de intubação orotraqueal, ventilação mecânica, sedação e drogas vasoativas (noradrenalina e dobutamina), sendo encaminhada para unidade de terapia intensiva.

Realizou-se ecocardiograma de emergência, o qual evidenciou estenose de prótese valvar aórtica mecânica grave com sinais de trombose (gradiente de pico de 126 mmHg e médio de 75 mmHg). Em franca instabilidade hemodinâmica e em uso de noradrenalina em altas doses, a paciente foi levada ao centro cirúrgico.

Procedeu-se à toracotomia mediana transesternal padrão, dissecção de abundantes aderências, abertura de saco pericárdico e visualização de constrição em aorta ascendente (estenose supra-aórtica) (Figura 1). Após heparinização (4 mg/kg), estabeleceu-se circulação extracorpórea (CEC), resfriamento até 27ºC, pinçamento aórtico e infusão de solução cardioplégica fria St. Thomas anterógrada em raiz aórtica (2x). Procedeu-se à abertura da aorta e visibilização de múltiplos trombos subprotéticos e posterior trombectomia, seguida de reconstrução da aorta ascendente com alargamento da aorta proximal com incisão longitudinal de aproximadamente 3 cm em direção ao anel valvar aórtico correspondente ao folheto não coronariano e posterior sutura com pericárdio bovino de forma triangular de 4 cm2 de área com polipropileno 4-0. Sequencialmente, realizou-se aortorrafia com polipropileno 4-0 envolvendo o patch de pericárdio bovino (Figura 2).

 

 

 

 

 

 

Estabeleceu-se o aquecimento total, estabilização hemodinâmica, despinçamento aórtico com retorno dos batimentos espontaneamente, saída de CEC (55 minutos), reposição volumétrica até o limite do prime estático, retirada das cânulas, reversão da heparinização com protamina (1:1), inserção de eletrodo para marcapasso temporário epicárdico, drenagem da cavidade mediastinal e, por fim, síntese por planos.

No pós-operatório imediato, a paciente obteve melhora clínica significativa, sem a utilização de drogas vasoativas e com desmame precoce da ventilação mecânica.

Os parâmetros ecocardiográficos no pós-operatório (Figura 3) evidenciaram fração de ejeção de 48%, disfunção sistólica leve, prótese mecânica aórtica com estenose discreta e refluxo mínimo, gradientes VE-Ao máximo de 47 mmHg e médio de 29,5 mmHg, estenose supravalvar mínima e gradiente sistólico máximo na aorta ascendente estimado em 24 mmHg.

 

 

 

Manteve-se estável em enfermaria, amamentando e sem queixas importantes, com drogas para insuficiência cardíaca, antibioticoterapia e anticoagulação adequada. No dia 25/6/2010, obteve alta hospitalar em excelentes condições com warfarin, carvedilol e captopril. Foi orientada para controle ambulatorial para avaliação clínica e tempo de protrombina.

Este relato de caso recebeu aprovação no Comitê de Ética da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Protocolo Número 1857).

 

DISCUSSÃO

Devido ao estado de hipercoagulabilidade que se impõe na gestação, bem como ao potencial trombogênico das próteses mecânicas, é imperativa a anticoagulação ao longo de toda a gravidez. Os cumarínicos são extremamente eficazes e podem ser utilizados até 35-36 semanas, os quais, devido aos riscos de prematuridade e hemorragia fetal, devem ser substituídos pelas heparinas nas primeiras 12 semanas e nas últimas quatro, que apesar de mais segura para o feto, aumenta o risco de trombose materna, quando comparada com os inibidores da vitamina K [2].

A paciente em questão fazia uso de cumarínicos, porém não estava anticoagulada adequadamente, fato comprovado pelos exames de admissão (INR=1,10), longe dos padrões recomendados, INR entre 2,5 e 3,52. Nem se utilizava de heparina em ambiente hospitalar nesta fase da gestação, o que provavelmente provocou a formação de trombos na prótese aórtica mecânica. Tal fato, associado ao aumento fisiológico da volemia e trabalho cardíaco na gravidez, bem como ao aumento da pré-carga proporcionado pela descompressão da veia cava pelo útero ao se retirar o concepto, precipitaram a descompensação cardíaca, a qual se manifestou por colapso circulatório e edema agudo de pulmão.

A estenose supra-aórtica, doença incluída nas chamadas lesões obstrutivas do ventrículo esquerdo, é uma condição rara, principalmente quando se remete a sua forma adquirida, com etiologias mais comuns de aortites, constrições aneurismáticas [3] e até cirurgias aórticas prévias [4,5].

Para correção cirúrgica da estenose supra-aórtica usualmente utilizam-se quatro técnicas: ampliação com "patch" simples no seio de Valsalva não-coronariano, técnica de McGoon et al. [6]; ampliação com "patch" bifurcado em Y nos seios de Valsalva não-coronariano e coronariano direito, técnica de Doty [7,8]; ampliação dos três seios de Valsalva com "patch", técnica de Brom & Khonsari [9] e aortoplastia com ampliação dos três seios da aorta distal sem utilização de material protético, técnica de Sousa et al. [10,11]. Todas as técnicas com resultados pós-operatórios muito satisfatórios.

A estenose supra-aórtica do caso relatado possivelmente foi consequência de implante prévio de prótese aórtica mecânica, o que levou a uma constrição localizada, a qual foi abordada de forma diferente dos modelos tradicionais consagrados [6-10]. A utilização da estratégia operatória descrita anteriormente proporcionou bons resultados hemodinâmicos, evolução pós-operatória e cirúrgica satisfatórias.

Considerando a gravidade deste caso: puérpera imediata portadora de prótese mecânica aórtica e estenose supravalvar aórtica adquirida, submetida à cirurgia cardíaca de urgência, com instabilidade hemodinâmica grave e com uma técnica operatória adaptada, apresenta-se uma evolução clínica pós-operatória e resultados ecocardiográficos satisfatórios.

 

REFERÊNCIAS

1. Elkayam U, Bitar F. Valvular heart disease and pregnancy: part II: prosthetic valves. J Am Coll Cardiol. 2005;46(3):403-10. [MedLine]

2. Bonow RO, Carabello B, de Leon AC, Edmunds LH Jr, Fedderly BJ, Freed MD, et al. ACC/AHA Guidelines for the management of patients with valvular heart disease. Executive Summary. A report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines (Committee on Management of Patients with Valvular Heart Disease). J Heart Valve Dis. 1998;7(6):672-707. [MedLine]

3. Neutze JM, Calder AL, Gentles TL, Wilson NJ. Aortic stenosis. In: Moller JH, Hoffman JIE, eds. Pediatric cardiovascular medicine. Philadelphia:Churchill Livingstone;2000. p.511-51.

4. Elkayam U. Pregnancy through a prosthetic heart valve. J Am Coll Cardiol. 1999;33(6):1642-5. [MedLine]

5. Turley AJ, Dark J, Adams PC. Acquired supravalvular aortic stenosis: a late complication of replacement of the ascending aorta. Eur J Cardiothorac Surg. 2008;34(3):690-2. [MedLine]

6. McGoon DC, Markin HT, Vlad P, Kirklin JW. The surgical treatment of supravalvular aortic stenosis. J Thorac Cardiovasc Surg. 1961;41:125-33.

7. Doty DB. Supravalvar aortic stenosis. Ann Thorac Surg. 1991;51(6):886-7. [MedLine]

8. Croti UA, Braile DM, Marcelo Felipe Kozak MF, Vieira TO. Aortoplastia estendida com pericárdio bovino no tratamento da estenose aórtica supravalvar (técnica de Doty). Rev Bras Cir Cardiovasc. 2006;21(3):358-9. Visualizar artigo

9. Brom AG, Khonsari S. Cardiac surgery: safeguards and pitfalls in operative technique. 1ª ed. Rockville:Aspen;1988. p.276-80.

10. Sousa LCB, Chaccur P, Dinkhuysen JJ, Fontes MA, Fontes VF, Abdulmassih Neto C, et al. Modificação técnica na cirurgia da estenose aórtica supravalvar. Rev Bras Cir Cardiovasc. 1992;7(2):121-6. Visualizar artigo

11. Bonini RCA, Palazzi EM, Chaccur P, Sousa LCB. Correção cirúrgica da estenose aórtica supravalvar com modificação da técnica de Sousa. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2010;25(2):253-6. [MedLine] Visualizar artigo

Article receive on quinta-feira, 7 de outubro de 2010

CCBY All scientific articles published at www.rbccv.org.br are licensed under a Creative Commons license

Indexes

All rights reserved 2017 / © 2024 Brazilian Society of Cardiovascular Surgery DEVELOPMENT BY