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CARTAS AO EDITOR

Raio do vaso, resistência e fluxo coronariano parte II

DOI: 10.1590/S0102-76382010000300026

Raio do vaso, resistência e fluxo coronariano parte II

Estimado Dr. Braile,

Na penúltima edição de nossa revista, foi publicado interessante artigo sobre a física aplicada à cirurgia cardíaca: Conceitos de física básica que todo cirurgião cardiovascular deve saber. Parte I - Mecânica dos fluídos[1].

Como o próprio título sugere, o artigo está claramente voltado para a formação dos cirurgiões. Como o referido artigo apresentava um pequeno erro conceitual, quando aplicando à mecânica dos fluidos para uma situação real de obstrução coronariana, escrevi uma carta publicada na última edição da nossa revista, alertando para este equívoco[2]. Na mesma edição, houve uma resposta assinada pelo Dr. Marcos Aurélio Barbosa de Oliveira à minha carta, que afirma que os enxertos sequenciais são propícios à trombose. Este conceito tem implicações clínico-cirúrgicas tão importantes quanto questionáveis. Obrigo-me, portanto, a escrever uma nova carta de esclarecimentos para que nossos jovens cirurgiões tenham uma formação sólida.

Primeiro é preciso rever alguns conceitos. A equação de Hagen-Poiseuille é uma lei da física que descreve um fluxo laminar incompressível de baixa viscosidade através de um tubo de seção transversal circular constante.

À jusante dos ramos coronarianos epicárdicos, o sistema circulatório deixa inquestionavelmente de ser retilíneo e, portanto, não apresenta secção transversal circular constante. "Em nível capilar, a hemácia preenche toda a luz do vaso e converte-se num êmbolo móvel. Consequentemente, o fluxo perde completamente sua característica laminar e adquire as características ilustradas na figura abaixo"[3](Figura 1). Logo, no leito capilar, a equação de Hagen-Poiseuille simplesmente perde a validade.


Fig.1 - Fluxo em leito capilar. Representação de fluxo não laminar em leito capilar onde a hemácia converte-se num êmbolo móvel



Mas se apesar disso a equação de Hagen-Poiseuille (ou suas variáveis) for utilizada, resta um problema: existe cerca de 4000 capilares por mm2 de secção transversal do miocárdio, o que dá uma relação de 1:1 de capilar por fibra muscular. Nem todos os capilares encontram-se abertos ao mesmo tempo, pois os esfíncteres capilares exercem uma função reguladora que representa cerca de 95% da resistência do sistema entre o "óstio coronário até o seio coronário"[4]. Como saber então quais capilares estão abertos e, portanto, quantos vão entrar na conta para que as "variáveis da equação sejam alocadas corretamente"? E mesmo se soubéssemos quais estão abertos, qual o diâmetro a ser considerado em cada capilar, visto que os esfíncteres capilares que estão abertos certamente não apresentam relaxamento total constante de sua musculatura?

"É importante mencionar que a regulação refinada do fluxo é uma necessidade vital para a regulação do coração, pois este normalmente extrai 75%-80% do oxigênio que lhe é oferecido, e as necessidades de oxigênio da fibra miocárdica são atendidas fundamentalmente por ajuste no fluxo coronariano. Nota-se, assim, que apesar de grandes variações do consumo miocárdico de oxigênio, a saturação de oxigênio no seio coronário permanece essencialmente estável, ou seja, 4-5 vol%."[5]. Logo, seria impensável que o fluxo da microcirculação pudesse ser determinado pelo diâmetro constante de seus vasos e, portanto, sob a regência da equação de Hagen-Poiseuille e ainda assim ser capaz de manter um equilíbrio tão delicado.

Em relação à anatomia, a característica da irrigação coronariana é de ser terminal, ou seja, cada ramo arterial irriga um único território. Evidentemente que existe circulação colateral, que no homem em condições normais não tem grande significado fisiológico, apesar de que na presença de coronariopatia pode ter considerável valor funcional[4].

Como 95% da resistência do sistema estão no leito capilar, quanto mais território muscular, menor a resistência e maior o fluxo. Logo, se utilizarmos um enxerto que irrigue dois ou mais ramos coronarianos, obviamente aumenta o território e, consequentemente, aumenta o fluxo por este enxerto. Como apenas 5% da resistência do sistema estão no segmento à montante da microcirculação, o raio do enxerto é de pequena relevância. Isto está de acordo com os achados de Nordgaard et al.[6], que demonstraram que o fluxo em enxertos sequenciais é significativamente maior do que em enxertos isolados e explica porque a literatura apresenta trabalhos que demonstram que os enxertos sequenciais são equivalentes[7-11] ou superiores[12,13] aos enxertos isolados.

Em resumo, os princípios fisiológicos da circulação coronariana excluem a utilização da equação de Hagen-Poiseuille para determinação de seu fluxo. Existem evidências teóricas e experimentais de que o fluxo dos enxertos sequenciais é superior ao dos enxertos isolados. E, finalmente, a literatura demonstra que os enxertos sequenciais são equivalentes ou superiores aos enxertos isolados. Portanto, a afirmação de que enxertos sequenciais são mais propícios à trombose não encontra apoio na literatura.

Termino esta carta como terminei a última: conceitos de física básica são fundamentais, mas é preciso todo cuidado para sua aplicação em modelos complexos como o sistema cardiovascular.

Grato,

Roberto Rocha e Silva, São Paulo/SP


REFERÊNCIAS

1. Oliveira MAB, Alves FT, Silva MVP, Croti UA, Godoy MF, Braile DM. Conceitos de física básica que todo cirurgião cardiovascular deve saber. Parte I - Mecânica dos fluídos. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2010;25(1):1-10. [MedLine]

2. Rocha-e-Silva R. Raio do vaso, resistência e fluxo coronariano. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2010;25(2):281-2.

3. Silva MR. Fisiopatologia da circulação. São Paulo:Editora Atheneu;2000. p.24-5.

4. Silva MR. Fisiopatologia da circulação. São Paulo:Editora Atheneu;2000. p.77-8.

5. Silva MR. Fisiopatologia da circulação. São Paulo:Editora Atheneu;2000. p.80.

6. Nordgaard H, Vitale N, Haaverstad R. Transit-time blood flow measurements in sequential saphenous coronary artery bypass grafts. Ann Thorac Surg. 2009;87(5):1409-15. [MedLine]

7. Rocha-e-Silva R, Mansur AP, Fabri Junior J, Ramos RB, Cunha Filho CE, Dallan LA, et al. Coronary revascularization with the left internal thoracic artery and radial artery: comparison of short-term clinical evolution between elective and emergency surgery. Clinics (São Paulo). 2005;60(3):227-32.

8. Rocha-e-Silva R, Santos TS, Rochite CE, Rocha-Filho JA, Mansur AP, Fabri J Jr, et al. Elective vs. non-elective radial artery grafts: comparing midterm results through 64-Slice computed tomography. Clinics (São Paulo). 2007;62(6):725-30.

9. Silva RR, Truffa MA, Birolli JR, Silva TF, De Mola R, Oliveira JB. CABG late angiographic grafting patency analysis in patients with recurrent symptoms. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2009;24(2):138-42. [MedLine]

10. Oliveira JB, Rocha-e-Silva R, De Mola R, Ribera RAP. Técnica para retirada da artéria radial sem utilização de clipes hemostáticos e experiência clínica. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2008;23(1):114-7. [MedLine]

11. Dion R, Glineur D, Derouck D, Verhelst R, Noirhomme P, El Khoury G, et al. Long-term clinical and angiographic followup of sequential internal thoracic artery grafting. Eur J Cardiothorac Surg. 2000;17(4):407-14. [MedLine]

12. Vural KM, Sener E, Tasdemir O. Long-term patency of sequential and individual saphenous vein coronary bypass grafts. Eur J Cardiothorac Surg. 2001;19(2):140-4. [MedLine]

13. Farsak B, Tokmakoglu H, Kandemir O, Günaydin S, Aydin H, Yorgancioglu C, et al. Angiographic assessment of sequential and individual coronary artery bypass grafting. J Card Surg. 2003;18(6):524-9.
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