Article

lock Open Access lock Peer-Reviewed

3

Views

RELATO DE CASO

Dissecção coronariana espontânea: relato de caso

Gustavo J. Ventura CoutoI; Alexandre de O. DeslandesI; Paulo César de Souza SantosI; Alexandre de Araújo CruzI; Roberto Santos SaraivaII

DOI: 10.1590/S0102-76382007000100021

RESUMO

O objetivo do trabalho é demonstrar o caso de um homem de 62 anos, com quadro de dissecção coronariana espontânea, localizada em 1/3 inicial de coronária circunflexa esquerda, tratado cirurgicamente com revascularização miocárdica. A operação realizada com sucesso demonstra, nesse caso, ser o único meio possível de cura.

ABSTRACT

The purpose of the paper is to demonstrate the case of a 62-year-old man, with spontaneous coronary dissection of the left circumflex artery, treated surgically by myocardial revascularization. The successfully accomplished surgery demonstrates, in this case, to be the only possible way of a cure.
INTRODUÇÃO

A dissecção coronariana espontânea é um evento extremamente raro, havendo apenas cerca de 150 casos relatados na literatura [1,2] e cerca de 70% são diagnosticados post-mortem [1]. Essa condição foi primeiramente descrita por Pretty, em 1931, durante a autópsia de uma mulher de 42 anos, diagnosticada com morte súbita [2]. A doença acomete mais pacientes jovens, durante o periparto e sem história de doença aterosclerótica, contando dois terços dos casos [2]. Em relação à aterosclerose, o homem é mais afetado.

A artéria coronária descendente anterior esquerda é mais acometida em mulheres (75%) e a coronária direita no sexo masculino (20%) [1,3].

RELATO DO CASO

Homem, 62 anos, sem antecedentes de cardiopatias ou história familiar de doença aterosclerótica, deu entrada no Pronto Socorro, de madrugada, com vômitos e taquicardia, iniciados há 20 minutos. Não relatava precordialgia ou pressão retroesternal, tendo acordado repentinamente com os sintomas.

Exame físico: orientado, anictérico, acianótico, hipocorado (++/4), afebril e hidratado. Ausculta pulmonar: murmúrio vesicular universalmente audível, sem ruídos adventícios. Precórdio: ritmo cardíaco irregular, em dois tempos, bulhas hipofonéticas, com sopro sistólico (++/6) em foco mitral, PA de 100 x 60 mmHg, e FC de 130 bpm. Abdome: flácido, indolor à palpação, com ruídos hidroaéreos presentes. Membros inferiores: sem edema, pulsos periféricos palpáveis, amplos e isócronos com seus homólogos.

ECG: fibrilação atrial, infra-desnível do segmento ST em V3 e V4, V5 e V6, e DI, correspondendo ao septo médio, região apical e lateral, respectivamente. Enzimas cardíacas revelaram quadro de infarto em evolução: CPK: 2692 U/I, CK-MB: 263 U/I, mioglobina: 1000 ng/mL, troponina 97,60 ng/mL. Hemograma detectou discreto quadro anêmico (Hb= 11,40 g/dl).

Imediatamente, o paciente foi encaminhado à coronariografia, visando à angioplastia primária. No entanto, revelou-se dissecção de artéria coronária circunflexa, ao longo de todo o terço proximal e médio desta, incluindo a origem da primeira marginal (Figura 1). Revelando, também, obstrução de 60% em óstio e 80% no terço médio de artéria descendente anterior.


Fig. 1 - Dissecção em coronária circunflexa visualizada durante coronariografia


O paciente foi internado na unidade de dor torácica para acompanhamento clínico, mantendo-se hemodinamicamente estável após reversão química da fibrilação atrial. O uso de heparina de baixo peso molecular foi estritamente monitorado.

No transcorrer da internação, a curva enzimática apresentou decréscimo nos valores, porém sem normalização. O ecocardiograma revelou discinesia da parede ínfero-lateral do ventrículo esquerdo, jato regurgitante mitral de grau leve e função global preservada.

A coronarioplastia com uso de stent farmacológico foi contra-indicada, devido à dissecção acometer a região ostial da artéria circunflexa, podendo estender-se ao tronco da artéria coronária esquerda. Além disso, a dissecção era extensa, obrigando o uso de mais de um stent, indicando-se, portanto, a cirurgia de revascularização miocárdica. Esta se consistiu de anastomose de artéria torácica interna esquerda em coronária interventricular anterior e anastomose seqüencial de segmento de veia safena na primeira marginal e primeira diagonal. Face ao ramo ventricular posterior esquerdo apresentar-se hipoplásico, decidimos não revascularizá-lo. A anastomose seqüencial de segmento de veia safena é rotina em nosso serviço, quando se necessita revascularização de dois ou mais ramos de uma mesma coronária. No quinto dia de pós-operatório, o paciente obteve alta hospitalar com recomendação de uso contínuo de clopidogrel 150 mg/dia e demais medicações de rotina para o pós-operatório de revascularização miocárdica.

O trabalho aqui apresentado foi revisado e aprovado pelo comitê de ética do Hospital São Lucas.

DISCUSSÃO

A etiologia da dissecção coronariana permanece incerta e a maioria dos autores classifica os pacientes em três grupos: os do sexo feminino, os com aterosclerose e os sem causa identificável.

Há uma associação empírica entre dissecção coronariana e gravidez. Isso se deve a variações hormonais, que influenciam na composição do vaso. Junto a alterações hemodinâmicas, as artérias coronárias tornam-se mais susceptíveis [4].

Os homens diagnosticados têm características diferentes. São mais idosos (em média 55,7 anos), e com múltiplos fatores de risco para doença aterosclerótica. As placas podem romperem-se, gerando uma solução de continuidade na íntima, conseqüentemente um hematoma abaixo da camada, dissecando-a [4]. Apesar da sua gravidade, os pacientes com a dissecção relacionada à aterosclerose parecem ter um curso mais benigno, pois têm chance de desenvolver uma rede de circulação colateral [4]. No caso relatado, a doença aterosclerótica não foi demonstrada na artéria coronária que apresentou dissecção.

O exercício físico extenuante pode também alterar os parâmetros hemodinâmicos, levando a uma possível dissecção, especialmente naqueles com fatores predisponentes. O paciente em questão relata a prática de exercício físico há anos, porém em moderada intensidade, não o tendo realizado no dia em que apresentou os sintomas.

Outras condições que foram relacionadas com a dissecção são: lupus eritematoso sistêmico, trauma torácico fechado, sarcoidose, displasia fibromuscular, ressuscitação cardiopulmonar, uso de cocaína, hipertensão, entre outras [4,5]. Rogers et al. [6] relataram que a dissecção coronariana pode acontecer em até 30% das angioplastias realizadas, com lesões classificadas em gradativa morbidade. O paciente, no relato de sua história clínica e de seus antecedentes patológicos, não referiu qualquer comorbidade digna de nota.

A eosinofilia é amplamente relatada nos trabalhos e seu significado ainda é incerto. Alguns autores sugerem que os eosinófilos lesionam a parede arterial por meio de substâncias líticas, porém, é mais provável que essa "inflamação" seja conseqüência e não causa da dissecção.

A manifestação clínica depende da artéria acometida, da posição e da extensão da dissecção. Entretanto, a dissecção coronariana, geralmente, se apresenta como morte súbita, com a maioria dos casos diagnosticada na autópsia. No caso em questão, o paciente teve uma apresentação clínica relacionada à taquiarritmia (fibrilação atrial), porém, com o diagnóstico final de infarto agudo do miocárdio.

O diagnóstico antemortem é feito por meio de coronariografia, observando-se presença de dupla luz radiopaca, separada por uma linha intimal radiolúcida. Neste caso, a dissecção foi vista ao longo do terço proximal e médio da artéria circunflexa da coronária esquerda em nosso paciente. Quando há dúvida no diagnóstico, a ultra-sonografia intravascular é indicada para confirmação [5].

A decisão quanto à melhor terapêutica depende de alguns fatores: apresentação clínica, localização e extensão da dissecção, bem como da área lesada no miocárdio.

A terapêutica medicamentosa, com aspirina e antagonista de glicoproteína IIb/IIIa, beta bloqueadores e nitratos, é indicada para os que se encontram assintomáticos, estáveis e com dissecções limitadas [2,4,5].

Com base no achado inflamatório dos vasos coronarianos, resultados favoráveis vêm sendo demonstrados com o uso de imunossupressores, como predinisona e ciclofosfamida [5].

A trombólise intravenosa tem sido demonstrada como benéfica, provocando lise do coágulo no falso lúmem e, assim, diminuindo a compressão no lúmen verdadeiro. Porém, a maioria dos estudos relaciona o uso de trombolíticos com a piora do quadro, aumentando a lesão por expansão do hematoma intramural [5]. Não foi usado trombolítico em nosso paciente, mas houve o receio da heparina se comportar como tal.

Quando uma extensa área miocárdica está em risco, é necessário reperfundi-la e, portanto, a coronarioplastia com utilização de endoprótese intracoronariana é a primeira opção, objetivando a oclusão do orifício de entrada e o redirecionamento do fluxo à luz verdadeira. Os resultados são excelentes, com baixa taxa de complicações.

A cirurgia de revascularização é indicada quando todos os outros tratamentos falham ou são contra-indicados [6-8], porém, há chance de progressão da dissecção para o enxerto. Para o paciente aqui relatado, optou-se pela revascularização cirúrgica devido à presença de lesões ateroscleróticas em artéria coronária interventricular anterior, região ostial e terço médio (60 e 80%, respectivamente) e pelo caso apresentar-se anatomicamente como lesão de tronco de coronária esquerda.

CONCLUSÃO

Dissecção coronariana espontânea é uma causa rara de isquemia aguda do miocárdio, com uma apresentação clínica ampla. Geralmente, ocorre em mulheres jovens durante o periparto, apesar de também afetar homens. O diagnóstico da dissecção no caso relatado foi realizado por meio de angiografia coronariana que visava ao tratamento da isquemia. A decisão sobre o tratamento clínico, intervenção coronariana percutânea ou revascularização cirúrgica é baseada na apresentação clínica primária, na extensão da dissecção e na quantidade de miocárdio isquêmico que está em perigo. O caso relatado demonstra a necessidade da intervenção cirúrgica em uma situação que, claramente, é o único meio satisfatório de tratamento.

REFERÊNCIAS

1. Narasimham S. Spontaneous coronary artery dissection (SCAD). IJCVS. 2004;20:189-91.

2. Verma PK, Sandhu MS, Mittal BR, Aggarwal N, Kumar A, Mayank M, et al. Large spontaneous coronary artery dissections. a study of three cases, literature review, and possible therapeutic strategies. Angiology. 2004;55(3):309-18.

3. Domínguez-García PJ, Tristancho-Garzón A, Castillo-Quintero M, Marquez-Fernández M, Ortiz Mera I, Ortega Zarza P, et al. Diseccíon coronaria espontánea: una rara forma de presentación de síndrome coronario agudo. Emergências. 2005;17(4):197-9.

4. Hinojal YC, Di Stefano S, Florez S, Martinez G, de la Fuente L, Casqueiro E, et al. Spontaneous coronary dissection during postpartum: etiology and controversies in management. Ital Heart J. 2004;5(7):563-5.

5. Almeda FQ, Barkatullah S, Kavinsk CJ. Spontaneous coronary artery dissection. Clin Cardiol. 2004;27(7):377-80.

6. Rogers JH, Lasala JM. Coronary artery dissection and perforation complicating percutaneous coronary intervention. J Invasive Cardiol. 2004;16(9):493-9.

7. Aragüés-Sotomayor CV, Lorena-Bastacini V, Soledad-Bordón M, López-Campanher AG. Disección coronária espontánea. Revista de Posgrado de la VIa Cátedra de Medicina. 2003;134:16-8.

8. Gualis J, Di Stefano S, Echevarria JR, Casqueiro E, Bustamante J, Carrascal Y, et al. Disección espontânea de la artéria coronária descendente anterior tratada mediante cirugía sin circulación extracorpórea. Rev Argent Cardiol. 2006;74(2):157-9.

CCBY All scientific articles published at www.rbccv.org.br are licensed under a Creative Commons license

Indexes

All rights reserved 2017 / © 2024 Brazilian Society of Cardiovascular Surgery DEVELOPMENT BY